Discurso de Embaixador, sensibiliza participantes do curso Mundo Islâmico.

Na solenidade de abertura da 2ª edição do curso Mundo Islâmico – Sociedade | Cultura | Estado, realizado no Instituto Rio Branco, em Brasília, o embaixador Gonçalo Mourão, diretor do Instituto, uma das mais importantes escolas de diplomacia do mundo, saudou os participantes com um discurso que queremos compartilhar com toda a comunidade muçulmana.

Veja abaixo, o texto completo das palavras do embaixador. 

 

Senhor Subsecretário Político, Embaixador Paulo Cordeiro, Dr. Mohamed El Zoghbi, Presidente da FAMBRAS, Senhor Diretor do Departamento do Oriente Médio, Embaixador Carlos Ceglia, Professor Hussein Ali Kalout, coordenador do Curso, Embaixadores, Colegas, Senhoras e Senhores

Ao iniciarmos este segundo Curso sobre o Mundo Islâmico, quero, em minha qualidade de Diretor do Instituto Rio Branco, dizer algumas palavras a respeito de porque este Instituto, mais uma vez, contribui para sua realização, apoiando esta iniciativa da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil e da Subsecretaria-Geral Política para o Oriente Médio e a África, do Ministério das Relações Exteriores.

Há pouco mais de cinco meses, o Papa Francisco reuniu no Vaticano o Presidente de Israel e o Presidente da Palestina, para rezarem os três juntos pela paz.   Pode parecer extraordinário, à primeira vista, que ambos tenham aceito o convite, já que estão engajados, quando não em ações de guerra, em conversações tensas de uma pretensa paz.   Se as armas e as negociações que se repetem não levam à paz, por que haveriam de levar à paz algumas orações?

O Papa não possui mais legiões, como disse no passado algum outro chefe de estado condutor da guerra; e não tem mandato reconhecido por ninguém para intermediar conversações de paz.   O que tem, então, o Papa, que o fez promover aquele encontro no Vaticano?

Creio que talvez tenha duas coisas:  uma delas, ele sabe que tem e da outra, acredito que tenha tido uma intuição.

O que ele sabe que tem, é algo que ele sabe que os dois Presidentes também têm e que é o que talvez os tenha feito aceitarem o inusitado convite:  e isso é Deus.   O Papa sabe que o Deus de Abraão é o Deus dos cristãos e é também o Deus dos muçulmanos.   O Deus é o mesmo; nós é que em nossas divisões não somos os mesmos.   Nós, cristãos, judeus e muçulmanos, é que saímos de junto de Deus, cada um para o seu lado e não sabemos mais como voltar, juntos, para Ele.

Esta foi a primeira grande novidade daquele convite do Papa.   Um convite religioso, sem dúvida, mas que se quer, também, civilizacional.   Se ao longo de toda a história os nossos esforços de conciliação, esforços conduzidos por nós mesmos, homens, foram vãos, é porque –  e isto é o que nos diz o Papa –  é porque não procuramos com afinco a ajuda de Deus.   Vamos rezar juntos, ou seja, vamos nos voltar juntos para Deus –  nos diz o Papa –  esse nosso único e mesmo Deus –  e talvez Ele possa suprir esta nossa milenar incapacidade de nos reconhecermos irmãos.

O Papa não pretendeu fazer diplomacia entre Estados ou entre Governos mas, sim, uma espécie de diplomacia de civilização.

E é talvez por isso que o seu gesto inaudito traz, também, a sombra de uma novidade conceitual, para as teorias das relações internacionais e para a consideração de todos os que se ocupam daquelas teorias, sejam eles tementes a Deus ou não, sejam eles politeístas ou ateus.   E é a ideia, talvez ingênua mas por isso mesmo provocativa e generosa, de um novo e diferente conceito de humanidade, expresso através de um novo e mais amplo conceito de ocidente.   O que temos aqui é uma proposta para que consideremos um novo conceito de civilização ocidental, que engloba a história das três religiões em seu seio.  O que o Papa parece querer dizer é que nossa civilização não é puramente a cristã, que a civilização deles não é puramente a moura e que a dos outros não é tampouco puramente a judia mas que vivemos, os três, no seio de uma mesma trajetória histórica e humana e jungidos a um mesmo destino que reza ao mesmo Deus.   A um Deus que em todas as três religiões tem amor por todos nós e que, se nós nos reconhecermos nesse mesmo Deus, teremos todos também amor e respeito por todos nós, nos reconhecendo parte comum de uma mesma aventura humana.

Temos, assim, lançada no meio das teorias de relações internacionais, a provocação criativa destes dois novos conceitos, a partir daquele convite, inusitado, para rezar junto com os dois Presidentes:  o conceito religioso do Deus comum que a todos ouça e o conceito político de uma civilização ocidental comum a que pertencemos todos.

Mas se aquele desafio se referiu, em um primeiro momento, ao diálogo entre as três religiões do mesmo Deus e à proposta conceitual de um novo ocidente, a provocação vai mais além e nos convoca a pensar aquele desafio como abrangendo a humanidade inteira.   Assim, se somos cristãos e batemos três vezes na madeira para evitar o azar, é que ainda trazemos dentro de nós algo do animista que talvez fomos um dia; se somos muçulmanos e buscamos uma forma de democracia, é porque reconhecemos valores de civilização criados séculos atrás por politeístas;  se somos judeus e estudamos Platão, é porque reconhecemos uma sabedoria humana externa à da Bíblia;  se para nós São Jorge é também Ogum, nós também somos os dois;  se somos budistas e vamos admirar o Nascimento de Vênus do Botticelli em Florença, é porque reconhecemos valores humanos diferentes dos que fundamentaram nossa concepção de mundo;  e, talvez, se choramos nossos mortos, seja porque trazemos dentro de nós uma certa desconfiança de que não exista Deus.   Assim, se hoje somos cristãos, podemos amanhã nos converter ao islamismo ou, se somos judeus, ao cristianismo, ou podemos nos tornar ateus ou umbandistas e isso não mudará em nada nossa natureza humana, continuaremos sendo iguais àqueles a quem éramos iguais antes.

Essa identidade comum, que se sobrepõe às diferenças, é que é convocada para fazer parte das teorias de relações internacionais, dentro de uma perspectiva positiva e criadora.   É verdade que os chamados encontros de civilizações causaram guerras, destruições e desentendimentos.   Mas não causaram só isso e nem principalmente só isso; e cabe aos que acreditam no entendimento entre os homens desenvolver as teorias de relações internacionais que expliquem e valorizem os aspectos de inovação e engrandecimento, que aqueles encontros de civilização sem dúvida promoveram e continuam a promover.   Desenvolver as teorias que nos mostrem que somos mais iguais que diferentes, ou, até mesmo, que porque somos diferentes é que somos iguais.

Muitos dirão que o mundo em seus detalhes é muito mais complexo do que isso.   Outros dirão até que o mundo não é nada disso, que isso tudo não passa de uma ingenuidade irreal.   Mas se o mundo foi o que nós fizemos dele, o mundo será, também, o que pensarmos dele.   E se, fazendo o que fizemos, até hoje, não foi suficiente para encontrarmos um caminho de paz, talvez devamos pensar de outra maneira sobre o mundo e assim, quiçá, oxalá faremos dele uma outra coisa.

Em última análise, o convite com que somos provocados é para pensarmos um outro mundo, é para pensarmos as relações internacionais de outra maneira, partirmos do zero e formular novas teorias de relações internacionais que privilegiem a paz como norma e como vocação humana na história.   Teorias que privilegiem o entendimento e a diversidade entre os homens como um patrimônio comum a ser cultivado; teorias que vejam os desentendimentos apenas como caminhos para o entendimento e não como razão para antagonismos insuperáveis ou como um determinismo fatal na longa e penosa história desta nossa frágil raça humana.   Enfim, é preciso formular teorias de relações internacionais que possam privilegiar a razão de nossa existência não como uma busca constante e interminável do poder sobre os outros mas como a busca da convivência em torno de um destino humano comum.

Tudo isso, talvez, seja o que explique o porque da realização deste segundo curso sobre o mundo islâmico aqui, na Academia Diplomática brasileira, aqui, no Instituto Rio Branco.

Desejo, portanto, um bom curso e passo a palavra ao Embaixador Paulo Cordeiro, para que nos diga algumas coisas talvez um pouco mais sensatas.

Muito obrigado.

 

MEUOEMBGONCALOOURAO(1)

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