Pelos olhos de Habib – a vida de um muçulmano no Brasil

Em 1941, em meio a Segunda Guerra Mundial, diversas cidades do Egito viviam em turbilhão. Todavia, Port-Said, Ismaília, El Tur e Ras Gharib, as quatro cidades que compõem o Canal de Suez, sentiam mais fortemente o drama daquela situação, pois abrigavam militares britânicos que ocupavam o país desde 1882.

Após quase um ano de confusões e grandes batalhas, em 1942, na cidade portuária de Port-Said, numa tarde de janeiro que, de tão frio, pela janela, não se via além do horizonte, um pequeno prédio de três andares se destaca. Lá, o silêncio, que era quase ensurdecedor, é cortado.

Uma fresta de luz sai da janela do pequeno quarto que abrigava a família. Ali nascia Mohamed Ezz El Din Mostafa Habib, personagem desta nossa história. Nasce essa criança em plena guerra, numa cidade que vivia décadas lutando contra ocupação militar britânica.

Mohamed passa sua infância e adolescência, diretamente, influenciadas pela realidade da sua cidade, do país e do mundo, o que o levou a desenvolver uma certa sensibilidade para as dores de mães, pais e jovens vítimas das atrocidades que aconteciam à sua volta; fenômeno esse que, talvez, crianças e adolescentes em outras situações, não teriam condições de perceber tão facilmente. “Crianças e adolescentes que nascem num país sob opressão e ocupação militar, geralmente, desenvolvem essa sensibilidade e consciência bem mais cedo que outros. Eu sentia que a situação era diferente, os pais falavam, professores na escola explicavam, a sociedade reclamava e criticava aquela situação negativa. E, isso tudo, foi motivo para que eu tivesse momentos de reflexão, o qual acabou interferindo na minha própria formação”, conta Habib.

Com dez anos e meio de idade, Mohamed conviveu o fim da monarquia egípcia, com a destituição do rei Faruk, e o início do país como República, governada pelos militares egípcios. Por um período inicial efêmero, o General Mohamed Naguib assume o poder para, em seguida, o transferir para Gamal Abdel Nasser, com o qual começa a era nasserista, o período mais fértil para o desenvolvimento daquele país e para a politização de todo o Mundo Árabe.

Nasser sabia muito bem que, sem recursos energéticos e sem recursos hídricos, não havia como colocar em marcha o seu plano desenvolvimentista. Convoca os acadêmicos e técnicos daquele país, os quais elaboram e apresentam o projeto da construção de uma barragem ao sul da cidade de Assuan, através da qual anexariam uma hidrelétrica para gerar eletricidade.

Nasser acata o projeto e solicita, em 1956, um empréstimo, junto ao Banco Mundial que o rejeita, pois, “o desenvolvimento do Egito é prejudicial aos interesses do ocidente na região”, diziam os banqueiros. Nasser, então, nacionaliza o Canal de Suez em julho de 1956.

Mohamed Habib, no auge de seus 14 anos, convive a alegria de todos os egípcios por esse corajoso ato do Nasser. Ele não imaginava que consequência poderia acontecer. Inglaterra, França e, ainda, Israel, atacam as quatro cidades egípcias do canal de Suez, incluindo a de Port-Said.

Enquanto o país pegava fogo, o prédio da família de Mohamed foi atacado por aviões de guerra e incendiado por Napalm. Todos saem com, apenas, o que cobria o corpo naquele momento, para poder fugir da morte. Aquele ataque criminoso, cometido por três países, contra civis, ficou conhecido como a Guerra do Suez. “Eu vivi a guerra no meu país, vimos a morte, o terror e a destruição de todas aquelas cidades em poucos dias”.

Mas Habib tinha um sonho: desde a sua infância, via no som da sua flauta de bamboo o refúgio, nela descarregando a sua tristeza. A música era o seu consolo e a sua terapia, com isso, tinha o sonho de ser músico. Aos 17 anos de idade, viu seus sonhos caírem um a um, quando seu pai o proíbe de fazer aquilo que parecia dar sentido a sua vida num mundo envolto por guerras que pareciam ser intermináveis: a música. “Meu pai jamais permitiria uma coisa dessas, um filho tornar-se músico, acreditando que atividades artísticas devem ser tratadas como momentos de lazer amador, e não como atividade profissional”.

Assim, Habib conclui o Segundo Grau na escola egípcia “Port-Said Secondry School”, e sai de casa para cursar algo que talvez não agradasse tanto o menino das praias, mas que, segundo seu pai, era algo que um homem de verdade deveria fazer. Em sua viagem, leva apenas o que restou de si em seu coração: a esperança de dias melhores.

“A vida me ensinou grandes lições, mas, talvez, a mais importante delas tenha sido passada pelo meu pai. Ele me disse que um homem de verdade não é aquele que faz o que gosta, mas, sim, o que aprende a gostar daquilo que o destino determina para ele fazer. Hoje, após um longo tempo de reflexões, posso saborear tais palavras com clareza e vitória”. Foi assim que Habib partiu para um mundo novo em busca de aventuras e grandes lições: Alexandria.

Em 1964, após quatro anos de curso, se forma Engenheiro Agrônomo e passa a dar aula como professor de Entomologia, disciplina essa que estuda a ciência dos insetos. E tendo aprendido a gostar daquilo que fazia, defendeu o título de Mestrado em 1968 e, sendo promovido na sua função de pesquisador no Centro Nacional de Pesquisa do Egito, na qual permaneceu até 1971.

Aos 31 anos, e antes de defender o seu título de Ph.D., ele sai do país para aterrissar no Brasil, em busca de um ideal. “Eu sai do Egito carregado de lições, desafios, sonhos e desejos. Cheguei aqui no dia 05 de agosto de 1972 e costumo dizer que foi o destino que me trouxe a esta terra. A cada dia eu descubro que sou muito abençoado”, conta. “Enquanto eu estava na Europa, as Embaixadas e Consulados que me receberam com mais carinho foram as brasileiras”, finaliza.

Entretanto, assim que chegou no aeroporto de Viracopos, em Campinas, um banho de água fria o tomou as costas: para seu espanto, ninguém falava árabe e nem sequer o inglês.

Habib, então, perambulou durante quase 5 horas pelo aeroporto, subia e descia as escadas, olhava a sua volta, porém ninguém entendia o que falava, o que passava em seu coração. “Assim que eu cheguei no aeroporto vi todas aquelas pessoas tão parecidas com os egípcios, me senti bem instantaneamente e pensei comigo ‘se eu ficar sem falar nada, ninguém vai pensar que sou estrangeiro. Mas eu precisava sair dali para a pensão’”, afirma.

Quando estava começando a perder as esperanças de chegar a seu destino, ele avista ao fundo que uma das aeromoças da Companhia Aérea Air France falava em inglês com algumas pessoas a sua volta, quando resolve ir conversar com ela e perguntar como fazia para chegar em São Paulo.

Mohamed então embarcou num táxi que o levou até Congonhas e, de lá, rumou com destino a uma pensão “Dona Alzira”, no bairro do Paraíso, região central de São Paulo.

A cidade, nos anos 70, estava começando a se tornar um polo de comércio, por isso a taxa de emigração do campo para o centro estava crescendo e por esse motivo as pensões estavam cada vez mais lotadas.

A pensão da Dona Alzira, que para os árabes ficou mais conhecida como Nazira, era um lugar visualmente antigo, tinha uma porta marrom esverdeada e uma escada que rangia a cada passada. Os moradores, que eram os mais diversos possíveis, se dividiam entre os quartos. “Você deve se perguntar por que eu escolhi uma pensão onde ninguém falava a minha língua”, indaga Habib. “Quando cheguei aqui, eu não sabia nada de português e precisava aprender com rapidez e, a melhor maneira de fazer isso, é ouvindo as pessoas”.

Mesmo com todas as dificuldades que a língua tentava impor, Habib nunca aquiesceu. Tornou-se cada dia mais forte e, no mesmo ano que chegou ao país, começou a trabalhar na UNICAMP, recebendo, apenas, ajuda de custo até sair a sua contratação. “Eu entrei no Brasil com a esperança de arrumar um emprego dentro da minha profissão e depois de dois meses eu já estava trabalhando como professor na UNICAMP, com a promessa de ser contratado”. E foi lá onde obteve muitos dos títulos que carrega com orgulho, como o de Doutor em Ciências Biológicas que conquistou em 1976, o de Livre Docente em 1982, de Professor Adjunto em 1984 e também o de Professor Titular que conquistou em 1986.

“Desde o início, a paixão pelo Brasil me levou a pedir a Deus que os brasileiros me considerassem e me tratassem como brasileiro. Sou formalmente naturalizado desde 1985”, comenta.

Das diversas lembranças que carrega no peito, Habib não esquece do dia em que confundiu o Reitor da Universidade. “Para mim, que estava no Brasil há três meses, a palavra reitor era um nome como outro qualquer”, comenta rindo. “Nós estávamos conversando quando comentei brevemente sobre minha vida e, respondendo uma pergunta que ele havia feito, mencionei que gostaria que a universidade me pagasse um salário, pois não tinha mais condições de me manter aqui no país. Assim que a conversa se encerrou e ele foi embora, o chefe do departamento voltou e deu uma bronca em mim”, falou. “Ele me perguntou ‘Você sabe com quem estava falando? ’ e eu sem entender, disse: sim o nome dele é Professor Reitor e, foi aí que descobri que reitor não é nome de pessoa e sim é nome de cargo, que seria o presidente da universidade”, finaliza.

Após o ocorrido, Habib pediu desculpas ao chefe do departamento, pela confusão. Duas semanas depois, foi a grande surpresa, quando começou a receber uma ajuda de custo, autorizada pelo Reitor da Universidade.

Professor Zeferino Vaz dedicou boa parte de sua vida à medicina e dentre os 73 anos vividos, foi responsável pelo início bem-sucedido de algumas instituições e universidades brasileiras, incluindo a UNICAMP. “Ele, fisicamente, tinha uma baixa estatura, mas era um grande homem”, comenta com saudosismo no tom de voz.

Em 1985, Professor Mohamed foi nomeado chefe do Departamento de Zoologia do Instituto de Biologia da UNICAMP. Ainda na administração da Universidade, foi membro titular do Conselho Universitário, eleito pelos professores da casa, e Coordenador de Relações Institucionais e Internacionais e foi, por dois mandatos, Pró-reitor de extensão e Assuntos Comunitários da UNICAMP. Após a sua aposentadoria compulsória e até a presente data, ele é contratado pela Universidade Santa Cecília (UNISANTA), como professor de Pós-Graduação, e ainda continua na UNICAMP, como professor colaborador convidado.

Hoje, Habib, com o seu olhar manso e a sua voz que se impõe, comanda o Instituto da Cultura Árabe no Brasil, o ICArabe. “Eu me sinto muito honrado em presidir o ICArabe, entretanto tenho bastante preocupação por tamanha responsabilidade”, comenta.

Dentre os planos futuros dessa que promete ser uma longa jornada de Habib, está o empenho em contribuir para que o “ICArabe sirva como instrumento esclarecedor e de respostas às dúvidas da sociedade, acerca da cultura e da história dos povos árabes”, finaliza Habib. A informação é chave esclarecedora contra qualquer tentativa de preconceito e de segregação racial. O desafio do ICArabe é exatamente esse: contribuir para corrigir as informações erradas, referentes a história e a cultura do mundo árabe, com toda a sua diversidade e complexidade.

Atualmente, Professor Habib acumula diversos títulos honoríficos, como o de Grande defensor da Ecologia e o de Cidadão Campineiro, concedidos pela Câmara Municipal de Campinas, ganhador da Medalha dos Direitos Humanos, pelo Presidente da República, por ocasião dos 50 anos da Declaração dos Direitos Humanos da ONU, em 1998.  Na academia, Habib conta com mais de 200 trabalhos científicos publicados em parceria com colaboradores e mais de 40 teses de mestrado e doutorado orientadas por ele “me aproximo de 50 anos de carreira acadêmica que me proporciona satisfação, realização e alegria”, conclui.

 

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